SINOPSE
A página branca suplica um poema
“A página branca suplica um poema”. Assim inicia Weliton Carvalho o primeiro poema deste livro sugerindo que, ao poeta, ou cabe conceder os meios para que a página se instale através das palavras na memória dos vivos, ou condená-la ao silêncio, súplice, para sempre. Na segunda hipótese, claro, o poeta estaria desertando de seu exercício, subtraindo-se à sua sina. Doar um poema para que uma página “fale”, como se sabe, faz parte dos ócios do ofício do escritor e, mais especificamente, neste caso, do poeta.
Ócios do ofício? A expressão remete a outra bem mais conhecida e que, dentro da ideia que se estabelece, chega a ser pertinente ou semelhante. Poderia ser “ossos do ofício”, insinuando o sacrifício inerente a essa missão: isso de sair à caça de palavras para arquitetar a tessitura da página. Mas o autor sugere (propositadamente) que sejam “ócios do ofício” – e deixará que a leitura dos poemas nos faça entender o porquê.
Ossos do ofício remete a labuta, a dificuldade e a cansaço..., porém, desde cedo, a leitura do texto promove de forma contundente a mais precisa adequação da palavra ócio, porque aqui não nos deparamos apenas com dilaceração e angústia. A suavidade e a sutileza do resultado poético, tangendo o sublime, significam a tensão sobrepujada: primeiro, a busca; depois, o encontro; e, mais tarde, a superação. Os ossos do ofício tornaram-se menos duros, mais tênues e contemplativos, em meio aos devaneios, como o autor sugere no poema que intitula o livro: “Então vem a palavra em socorro do sentir”. O esforço, o suor e a luta, recursos inerentes à complexidade do ofício, foram diluídos na contemplação. E que contemplação: “De repente / quando tudo se move / da mais banal manhã / às novas descobertas quânticas / a beleza se espanta diante de si mesma.”
Esse exercício continuado de extrair do ócio o progressivo distanciamento de um duro exercício – o sentir de onde virão as palavras – é a marca de vários poemas em que o poeta encontra o êxtase e transfere esse devaneio ao leitor, devaneio do qual falou com tanta propriedade Gaston Bachelard, em Poética do devaneio:
O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é um devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo, para mundos belos. Dá ao eu um não-eu que é o bem do eu, o não-eu meu. É esse não eu-meu que encanta, o eu do sonhador, o que os poetas sabem fazer-nos partilhar.
Esse compartilhamento, fruto dos ócios do ofício que o fizeram postar-se diante de uma página em branco para sentir-se e fazê-la sentir, se faz presente de uma forma ou de outra em quase todos os seus poemas. Weliton Carvalho quer nos fazer cúmplices do seu deslumbramento com o próprio trabalho, ao descrever a magia do seu exercício, contando, para isso, com a matéria-prima de sua construção, que são as palavras. Para isso, regurgita de louvor para com essa que é a sua matéria-prima, o significante através do qual vai glorificar sua postura diante da página branca, pela sina e pelo desafio de compor o livro. Unem-se o ócio, o exercício, a compulsão e o destino, para construir uma aventura sagrada que se alimenta de si mesma. A palavra, esse animal sutil, reverbera a beleza de sua própria existência e explicação. Assim o autor ilustra com a frase de outro escritor – “a palavra pássaro é outro pássaro” no poema Pássaro – a epifania de revelar, em sintomático e preciso poema, o que dizia Victor Hugo: “As palavras, como se sabe, são seres vivos”.
Devidamente municiado de palavras em seu alforje, o autor sempre está à beira de concluir a missão anunciada, “mesmo que as manhãs sejam banais e os tempos sombrios”, atingindo o alvo em melodias que se estendem até o final do livro. Tanto nos poemas já citados, como também, sobretudo, em Linguagem: “Linguagem: véus de mistério sobre os sentidos, / esfinge mutante do discurso: angústia e beleza / da poesia”; ou Criação: “... Porque na poesia o mundo ressuscita, / todo ele em azul dilacerado em sonho”. E em outro e mais outro...
“A palavra é uma vergôntea que tenta ser um râmulo”, sentenciou o mesmo Bachelard.
Assim se propôs e assim fez Weliton Carvalho. Decantou o ócio dos ossos do ofício e evocou a prece de Ramón del Valle-Inclan: “Desgraçado daquele que jamais juntou duas palavras que jamais estiveram juntas!” E nos presenteou com este Os ócios do ofício, para nos mostrar, com esse belo ajuntamento de palavras, tudo aquilo que deve ser feito pelos poetas diante de uma página branca.
José Ewerton Neto
Engenheiro e escritor; pertence à Academia Maranhense de Letras.
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