SINOPSE
Li com especial atenção A Casa do Interior, fiz-lhe uma visita. Dei curso à imaginação e ao adentrá-la, logo divisei o quintal com seus adornos naturais: poleiro, varal, plantas, paraíso de brincadeiras infantis, sequência na desenvoltura das lides domésticas. Quedei-me no cerimonial da bênção aos mais velhos e deixei livremente brotar recordações atreladas às lembranças do que vivi, assisti e amealhei ao correr de um tempo maravilhoso. Em cada linha encontrei saudade; em cada página senti o convite para feitio de um passeio pela velha Barra, cidade aberta ao aconchego, ternura desinteressada, misto de paz, sutil foco de irreverências. Pelas ruas, pude contrariar o dístico poético: “Oh mocidade, és relâmpago aos pés da eternidade”. Encontrei a juventude, minha eternidade dentro em mim.
Atravessei a Praça do Bar. Passei pelo jardim indo postar-me junto à balaustrada. Fluíam mansamente as águas dos Rios Grande e São Francisco. Do fundo da memória, não me espantaram os apitos dos Vapores (gaiolas) na alegria da chegada e azafama da atracação. O meu mundo parou. No milagre do pensamento, caí no reinado das lendas desde Jurupari, às estórias do Nego D’Água, da Onça Pintada, a Vira-lata e a Sucuri. Olhos parados, vista alongada para o Laranjal, onde se dá o encontro dos rios, sem que quisesse, me assomou uma natural indagação: Não seria ali a morada preferida do Nego D’Água? A fantasia aliada a simplicidade na fé me deteve no acontecido debate entre o Padre sábio e o velho Canoeiro.
Precisou o Padre fazer uma viagem urgente a Xiquexique. O transporte seria a canoa. Noite de lua, iam os dois cada qual no seu mister. No Mocambo do Vento, lugar de acontecimentos mirabolantes, para dissipar a solidão o Padre começou a resmungar. Talvez pensando numa conversão, vociferou: “este caso de Nego D’Água é conto da carochinha para amedrontar menino. Vamos vê? Nego D’Água porco safado, sem-vergonha”. E para espanto do Canoeiro que o acreditava Santo, despejou o Padre adjetivos pesados, desaforos, convite para briga. Persistiu o silêncio quase absoluto não fora o rumor das marolas acariciando a proa da canoa. Prosseguiu o Padre “cadê o valentão? Tá vendo?” O Canoeiro apenas murmurou: “É ...ele sabe que o senhor é Padre eu é que já estou com medo da volta, só com minha canoinha”. E o silêncio voltou a reinar.
Casos que tais, como a crença no duende e a fuga inopinada à conversão para gerar reza e pedido de perdão, criam maquinações grandiloquentes. Pareceu-me agora, que na noite de São João, as centenas de estouros de busca-pés, durante o desfile dos Fortes, não seriam força do entusiasmo apegado ao estrépito da competição. Seriam tão somente, aplausos da tradição à simplicidade dos costumes arraigada em corações empedernidos.
Andei pela Cabeça do Touro e me deliciei com a disputa musical. Sorvi a alegria dos banhistas e andei pelas ruas cobertas de luar, correndo feliz acompanhando a Lamentação das Almas, ao passar das horas durante a noite da Sexta feira Santa.
Para mim A CASA DO INTERIOR é um mágico transporte a um cadinho de humildade estonteante na paz, consagração de preceitos harmoniosos transmitidos de geração a gerações. Tudo nela espelha amor sem deixá-lo fugir à realidade. Dou testemunho da aglutinação dessas facetas num episódio que só em Barra pôde acontecer. Peço permissão para contá-lo.
A cidade ganhou um novo Bispo. Antes a solenidade acompanhava os passos do Clérigo; toque festivo de sino quando saia do Palácio Episcopal para Catedral; genuflexão feita quando do beijo ao anel na distribuição pessoal de bênção; reverência no falar, cortesia nos gestos. Agora um novo Bispo chegou e não mais as vestes talares, cerimonial desfeito. Certo dia D. Thiago, este era seu nome quis apreciar a majestade do pôr do sol, poema divino que, visto uma vez, jamais se o esquecerá. Vestido como homem comum, carteira de cigarros no bolso da camisa, o grande Bispo foi para onde o cais termina. Desceu a rampa e foi sentar-se na popa de uma canoa. Pensativo viu o São Francisco sereno, majestoso, barrento, refletindo estrelas que já começavam a bruxulear desde o pontal distante e o rio Grande a espreguiçar pachorrento desde a Serra do Estreito tingido do reflexo de nuvens vermelhas na despedida do sol “Pajé das tabas estelares” com o seu “coleante colar de contas coloridas.” Canoa de pescadores apoitadas, outras a velas singravam a corrente açoitadas por uma brisa morna. Pensava talvez na Pátria distante. Junto à sua, vinda da ilha carregada de capim, outra canoa aportou.
Após a cortesia de boa tarde aconteceu uma conversa trivial dos dois homens. O Bispo indagava sobre a lida diária do Canoeiro. Sorriam por vezes. O Bispo tirou um cigarro da carteira, ofereceu outro ao Canoeiro ascendendo-os. Tragadas se sucederam na sofreguidão do prazer de fumar. Conversa agora mais amistosa, quis o Canoeiro conhecer melhor o interlocutor e lhe perguntou: “O senhor é novo na cidade. O senhor é funcionário público ou caixeiro viajante”? No mesmo tom da conversa despretensiosa, o Bispo respondeu: Não amigo, eu sou o novo Bispo e expeliu boa baforada. O Canoeiro calou, o cigarro caiu-lhe da boca, rodopiou e despencou quase dentro d’água. O Bispo, diligentemente o socorreu. Recuperado, o Canoeiro esboçou um amarelo pedido de desculpas. O Bispo sorriu e não entendeu a causa de qualquer desrespeito. Desde aquele momento, entretanto, se tornaram amigos fraternos.
É bem difícil encontrar-se humildade no coração do homem. Bom seria que a buscássemos para adorno da personalidade. Sei que somos o que fomos numa aparência melhorada ditada pelas circunstâncias. Sei, também, que em cada um de nós existe um recanto especial que por vezes nos trai e nos faz menino outra vez. É um oásis onde canseiras e preocupações se desfazem para tudo expandir em força, confiança e certeza renovadas.
Reverenciei A CASA DO INTERIOR. Chamou-me à realidade do sonho. Fez-me curtir melhor esse oásis intocável, aplaudindo convicto a assertiva de Guerra Junqueiro: “As almas infantis são brandas como a neve. São pérolas de leite de urnas virginais. Tudo quanto se grava e quanto ali se escreve cristaliza em seguida e não se apaga mais”.
É sempre maravilhoso operar-se um retrocesso no tempo. Apegar-se as boas lembranças e amaciá-las para revigorar o presente e fortalecer o amanhã. Não fora isso, de nada nos valeria a angústia de viver.
Humberto Araújo
Academia de Letras e Artes do Salvador - ALAS
|