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A PROTEÇÃO JURÍDICA DA DIVERSIDADE SEXUAL EM FACE DA DISCRIMINAÇÃO NO TRABALHO

Autor: Mariana Gusso Krieger - Prefácio: Leonardo Vieira Wandelli
Páginas: 200 pgs.
Ano da Publicação: 2017
Editora: Instituto Memória
De: R$ 75,00 - por: R$ 70,00

SINOPSE

PREFÁCIO

Leonardo Vieira Wandelli[1]

A publicação desta obra A Proteção Jurídica da Diversidade Sexual em Face da Discriminação no Trabalho, de Mariana Krieger, que tenho a honra e alegria de prefaciar, é extremamente oportuna e relevante para o Direito do Trabalho.

O sentido de uma época pode ser captado pelos rastros deixados sobre as suas vítimas. Os dados de violência e homicídios da população LGBT são autoexplicativos: no ano de 2016, o número de mortes violentas contabilizadas em 343 casos atingiu o ponto mais alto da série histórica, ao passo que em menos de 10% dos casos chegou-se ao início do processo penal contra um acusado.[2] Ao mesmo tempo, manifestações de homotransfobia ganham em publicidade[3] e até mesmo a abordagem científica de gênero é alvo de campanhas institucionalizadas, muitas vezes incorporadas por agentes do Estado.[4]

O mundo do trabalho, é claro, está no centro desse processo. As práticas sociais nas relações de trabalho são atravessadas por diferentes formas de discriminação. Mulheres recebem, no Brasil, ainda em torno de 70% do salário dos homens. Negros recebem algo em torno de 50% do salário dos brancos. Ao tempo em que avança a onda neoliberal, promovendo discursos e medidas precarizantes das relações de trabalho, o ano de 2016 registrou, no Brasil, o primeiro retrocesso, após mais de duas décadas, no índice de Gini, que mede a desigualdade.

A desigualdade não é igual para todos. Grupos vulneráveis são mais gravemente afetados pelos processos de crise econômica, aprofundando a desigualdade e corroborando práticas discriminatórias. Este aspecto determina fortemente o combate à discriminação de pessoas em razão da sua orientação sexoafetiva, nas relações de trabalho. Considera-se que as pessoas têm que ser tratadas, nas relações de trabalho, da mesma forma, independentemente de fatores como a sua cor de pele, a sua origem regional ou nacional, o seu sexo, ser ou não portadora de doenças, o seu estado civil, ou o fato de ter uma orientação não-heterossexual. Com isso, se trata de combater que haja grupos de trabalhadores pior situados que outros. Mas por trás desse tipo de igualdade entre trabalhadores, ainda longe de ser atingida, permanece uma discriminação maior que o direito dificilmente alcança. O mercado de trabalho é estruturado na forma de uma discriminação social entre os que detêm capital e meios de organização produtiva e aqueles que só têm a sua força de trabalho para vender. Essa desigualdade de base entre todos os trabalhadores e o capital é criada e reproduzida pela forma social capitalista. Quando se fala de igualdade de tratamento e oportunidades, nem sempre se leva em conta a discriminação que está na base da estrutura sócio-econômica e que impõe, pelo impedimento do acesso aos meios de produção e pela ameaça da fome, que o trabalho – e com ele o corpo de quem trabalha – seja vendido na forma de uma mercadoria. Essa discriminação não é contrária à lei. Ela é “a lei”.[5]

Essa discriminação de base, por sua vez, se alimenta de outras formas de diferenciação discriminatória entre os trabalhadores. O capitalismo sempre se valeu dessa estratégia: o trabalho de mulheres, crianças, imigrantes, minorias étnicas e minorias sexuais sempre foi destinado às condições mais precárias e aos salários mais baixos ou mesmo sem pagamento, como no trabalho reprodutivo, doméstico. Ou seja, se o mundo do trabalho é precário e o trabalho é tratado como mercadoria ele é mais precário e se dá a ele menos valor no caso dessas parcelas da população.

Além disso, a discriminação das minorias sexuais se sobrepõe a outras discriminações de grupos vulneráveis, agravando a situação de um mercado de trabalho que se estrutura discriminando. Travestis negras imigrantes sujeitam-se a processos discriminatórios cruzados. Esse quadro, de diferentes graus de exploração, serve para alimentar a competição entre trabalhadores e reforçar a discriminação de base. A divisão e competição entre os trabalhadores reforça a discriminação fundamental e fragiliza a todos.

A alta incidência de vulnerabilidade social dos grupos LGBT transforma-se em fonte de integração discriminatória no mundo do trabalho. Nesse sentido, a inclusão social das minorias sexuais deve estar articulada à luta feminista, porque ambas ajudam a desconstruir a divisão sexual do trabalho, que se articula com a discriminação de base. Se existe trabalho de mulher e esse trabalho é pior remunerado que o dos homens[6], existem trabalhos de gays, trabalhos de travestis, que seguem as mesmas estratégias de separação e hierarquização dos postos de trabalho segundo os parâmetros de dominação e opressão em que classe, sexo, cor da pele, etnia, origem, religião são o mote para diferentes formar articuladas de racismo.[7] Além disso, ambas lutam contra a narrativa patriarcal de dominação, para a qual é essencial a dominação e opressão sexual.

É certo que o direito, a despeito das diversas proclamações e normas em prol da igualdade e contra a discriminação, na Constituição, nas normas internacionais, nas leis, tem uma grande dificuldade de enfrentar o problema, especialmente nas relações de trabalho. Primeiro, porque, como dito, a discriminação fundamental é a própria lei, numa sociedade capitalista. O Direito do Trabalho, ao mesmo tempo em que procura minimizar a discriminação de base e as discriminações entre trabalhadores, não deixa de legitimar e normalizar essas desigualdades.

Segundo, porque o direito, normalmente, direciona-se às condutas imputáveis dos atores sociais. Mas a discriminação geralmente se produz pela integração de inúmeras ações e omissões aparentemente normais e não indivizualizáveis de atores anônimos, mas que produzem efeitos discriminatórios. As estruturas sociais de produção, distribuição e consumo de bens materiais e simbólicos são basicamente desigualitárias. Estruturas sociais, embora se apoiem na conduta concreta de pessoas naturais e jurídicas e em instituições e normas sociais, não têm personalidade jurídica. Elas são o produto, intencional ou não, da conduta fragmentária de uma miríade de atores cuja conduta, isoladamente considerada, é tida por normal[8]. Mas o seu resultado é a desigualdade de acesso à produção, distribuição e consumo dos bens sociais. Essas estruturas se apoiam na desigualdade existente para se reproduzirem e obstruírem a sua modificação igualitária. E quanto maior a vulnerabilidade de uma pessoa ou grupo, maior a sua dificuldade de lutar contra a opressão e a desigualdade, reafirmando o círculo vicioso.

É claro que existem muitas atitudes identificáveis de discriminação contra não-heterosexuais no trabalho. Mas se já é difícil, ainda que por vezes possível, identificar, num processo judicial, que alguém foi despedido ou preterido em razão da orientação sexual, é praticamente impossível se comprovar, apenas a partir da análise de condutas, numa empresa que admite sem reservas gays ou lésbicas, porque o seu tempo de promoção na carreira é maior que o dobro dos heterossexuais.

A própria dificuldade de acesso a práticas de sociabilidade consideradas heterossexuais, como o futebol-cerveja da firma, o preconceito, em grande parte inconsciente, que dificulta a sociabilidade informal entre colegas heteros e não-heteros fora do trabalho, são fatores que afetam as possibilidades de promoção, por exemplo. Assim, mesmo quando ninguém possa ser imputado por alguma conduta visivelmente discriminatória, o resultado produzido é discriminatório. E contra isso a coibição jurídica das condutas discriminatórias tem pouco a fazer. Neste âmbito devem entrar as medidas de intervenção cultural, educacional e de ação afirmativa de promoção da igualdade que têm muito maior efetividade que o combate a condutas discriminatórias.

Por outro lado, a coibição de condutas discriminatórias – a perspectiva orientada ao ator – também é indispensável e tem efeitos indiretos sobre as estruturas discriminatórias. E muito há a ser feito, aí.

Este é o foco e onde reside o grande mérito do trabalho de Mariana Krieger. Fruto de dissertação de mestrado que tive a grata oportunidade de orientar, a obra que agora se traz a lume não só faz uma cuidadosa análise da casuística da coibição jurídica de condutas discriminatórias de trabalhadoras e trabalhadores LGBT. Vai além e desenvolve todo um enlace da não-discriminação com os direitos fundamentais ao trabalho e ao desenvolvimento da personalidade que introduz uma complexidade de análise que o tema dos direitos fundamentais merece ter. Os temas da sexualidade e do desenvolvimento da personalidade, cruciais para a proteção jurídica da pessoa em sua concretude, não são acessíveis ao direito senão em diálogo intenso com a psicologia e a sociologia, que a autora não negligencia. Apoiando-se na noção de centralidade do trabalho para o sujeito, de Christophe Dejours e na compreensão de um direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho, Mariana vai reunir conceitos jurídicos como direito à não-discriminação, direito à liberdade sexual, direito ao livre desenvolvimento da personalidade e direito ao trabalho, no coração das relações de trabalho.

Negar o direito a igual valor do fazer profissional, independentemente da orientação sexo-afetiva, significa negar o direito de afirmar sua identidade e desenvolver livremente a personalidade, por meio dos processos de reconhecimento da utilidade, domínio técnico e originalidade da contribuição à organização de trabalho. Quem trabalha não só está se desincumbindo de uma obrigação em troca de uma contraprestação necessária a sua subsistência. Nesse mesmo ato está exercendo um direito fundamental que é essencial à construção da identidade e saúde psíquica, à autorrealização, formação de vínculos de solidariedade e ao aprendizado para a convivência ética e a ação pública. Situar a discriminação da diversidade sexual no trabalho em torno desse arranjo, como faz a autora, com rigorosa fidelidade ao seu objeto de estudo, não deixa de ser inusitado, para quem eventualmente queira se aferrar às compreensões de gerações de direitos que determinariam sua estrutura e condições de exigibilidade. Mas a abordagem corajosa que a autora adota mostra-se essencial para remover os obstáculos jurídicos e ideológicos que limitam – por vezes no silêncio – a construção de relações de trabalho menos desiguais para a comunidade LGBT.

Como Mariana Krieger insiste em nos lembrar, o direito é fruto de lutas sociais e sem a luta e o empoderamento dos grupos LGBT ele não avançará quanto às diversas formas de discriminação. E todos estamos concernidos. Mesmo quando supostamente afetam apenas aos “outros”, ferem de morte a cada pessoa humana, pois reafirmam uma estrutura de poder social que se funda, em sua essência, na desigualdade e na divisão.

Eis um livro que merece ser lido e refletido criticamente. Deve, sobretudo, sair da estante e ganhar a luz do debate acadêmico e forense.

 

[1] Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, (2009); DEA em Derechos Humanos y Desarrollo pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilla (2006); Membro fundador da APDT – Academia Paranaense de Direito do Trabalho; Líder do GP- Trabalho e Regulação no Estado Constitucional, Consultant Contractor do OHCHR Office of the High Commissioner for Human Rights – UN; Juiz do Trabalho no Paraná.

[2] Os dados são elaborados pelo Grupo Gay da Bahia, em relatório anual, não havendo estatísticas oficiais. https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf

[3] Um deputado federal pré-candidato à presidência da república chegou a dizer publicamente que “prefiro um filho morto do que homossexual!”.

[4] A prefeitura de Ariquemes (RO), no início de 2017, anunciou que irá suprimir as páginas dos livros didáticos fornecidos pelo MEC que contenham “ideologia de gênero” e referências ao uso de preservativos e diversidade sexual. http://g1.globo.com/ro/ariquemes-e-vale-do-jamari/noticia/2017/01/prefeitura-manda-arrancar-paginas-de-livros-escolares-sobre-homossexuais.html

[5] Nesse sentido, VIANA, Márcio Túlio. Os dois modos de discriminar: velhos e novos enfoque. In. RENAULT, L.O.L, VIANA, M. T. e CANTELLI, P. O. Discriminação. 2ª ed., São Paulo, LTr, 2010, p. 143-149.

[6] COZERO, Paula Talita. O sexo da precarização: transformações nas relações trabalhistas e perpetuação da divisão sexual do trabalho. In RAMOS FILHO, W., GOSDAL, T. C e WANDELLI, L.V (orgs.) Trabalho e Direito: estudos contra a discriminação e patriarcalismo. Bauru: Praxis, 2013, p. 223-247.

[7] Sobre o racismo como técnica moderna de poder, FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2002, passim e 306-315.

[8] WANDELLI, Leonardo V. O combate às condutas discriminatórias no Direito do Trabalho. In RAMOS FILHO, W., GOSDAL, T. C e WANDELLI, L.V (orgs.) Trabalho e Direito: estudos contra a discriminação e patriarcalismo. Bauru: Praxis, 2013, p. 117-173.