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GIOVA

Autor: Sérgio Brandão
Páginas: 98 pgs.
Ano da Publicação: 2016
Editora: Instituto Memória
Preço: R$ 35,00

SINOPSE

Desde que me lembro, sempre convivi com o Marinho. Para mim era o Marinho, meu primo-irmão e companheiro das primeiras brincadeiras desde pequeno. Éramos três, uma “trinca” como nos denominávamos: ele o Beni e eu. Nesta época, por volta dos 10 até os 15 anos, mais ou menos, os três primos eram inseparáveis, principalmente nos finais de semana.

Assim como o Beni, eu vestia minhas botas, cartucheira e com o revólver na cintura o esperávamos. Aí aparecia o Marinho vestido de Tarzan. Confesso que achava um pouco ridícula sua tanga com pele de leopardo e seu peito nu, pensava que precisava de muita coragem para desfilar daquele jeito, mas ele era fã incondicional do Johnny Weissmuller e se sentia perfeitamente ajustado na pele do homem macaco.

Orientados por ele, criamos clubes e códigos para nos comunicarmos sem que nossos planos fossem descobertos.

Vivíamos a época das fantasias, éramos índios e caubóis e o quintal do vizinho era nossa selva particular. Pulávamos a janela do meu quarto enquanto o resto da casa dormia, saíamos em silêncio pela noite pulando muros e trepando em árvores. Chegamos a passar noites em claro em cima delas com as inseparáveis lanternas na mão e muita imaginação.

Éramos os protagonistas de um filme imaginário. Vivíamos e sabíamos que éramos felizes.

Pelo final dos anos 60 eu ouvia e via a Jovem Guarda, cantava Wanderley Cardoso e imitava o Jerry Adriane. Ele, por esta época, já ouvia Beatles e mais tarde, enquanto eu ainda era brega, ouvia e depois apresentou-me o David Bowie. Passávamos a tarde em um quartinho nos fundos de sua casa, todo revestido de caixas de ovos para abafar o som e ouvíamos, além do Bowie, Emerson, Lake & Palmer e outros grandes da época. Foi aí que passei a conhecer e apreciar a boa música.

Uma das marcas registradas do Marinho, era a lentidão para comer. Chegava a dar nos nervos. Lembro que ele com uns outros amigos, costumavam comer pizzas aos pedaços no restaurante Savoia, na rua XV, e ele sempre era prejudicado, pois enquanto os outros comiam de 3 a 4 fatias, ele ainda estava na metade da primeira e no final a conta era dividida por igual.

Anos depois, ele foi para Roraima morar com os índios e eu me mudei, para Portugal. Passados mais uns longos anos, bem depois de já ter voltado de Roraima, apareceu por lá, em Portugal para me visitar.

Isto foi em 1995, estava a caminho de Paris para entrevistar o Juarez Machado. Ficou alguns dias comigo. Depois seguiu de trem, para Paris. Ainda quando eu estava levando ele até a estação de Santa Apolônia, em Lisboa, insisti para que ficasse mais uns alguns dias, afinal, minha filha estava para nascer. Acabou nascendo no dia seguinte.

Dias depois liguei para lhe dar a notícia. Eu, todo babão, disse-lhe que a bebê era parecida comigo. Ele prontamente, com a voz lamentosa, me consolou - Ora, não se preocupe, o importante é que tenha saúde!

Neni Glock

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No começo dos anos 70, ainda eram fortes os ares da beatlemania, mas já sem os quatro em estúdio, gravando, como nos anos 60.

Entra em cena e aproveita o embalo uma nova geração de músicos capazes de manter um bom nível, mas sem a magia dos Beatles.

Quem gostava de música, entendeu que havia talento nos novos. Outros resistiram e continuaram consumindo apenas Beatles. Surgiam muitas tendências, algumas exóticas e até arrojadas para a época. Uns mais românticos, outros nem tanto. Festivais, música de tudo quanto era gênero pipocavam por todos os cantos. Alguns conseguiram falar a mesma língua que os músicos ingleses, ou pelo menos se aproximavam deles.

Uma produção enorme de tendências e estilos foram surgindo. Aquilo parecia não ter fim. Alguns chegaram bem perto do que faziam os garotos de Liverpool. Mas só os talentosos e geniais, conseguiram colocar a música num patamar além da arte e divertimento, fazendo dela veículo também de contestação.

Alguns ritmos e especialmente as letras, iam contra tudo que estava estabelecido. Uma parte desta geração, que na época completava seus 12, 13 ou 14 anos, entrou neste embalo.

Mesmo no Brasil, os reis do iê-iê-iê, ainda faziam seu barulho, com uma turma contestadora e briguenta. O Brasil tinha uma grande população jovem e por isso conseguiu chamar atenção.

Havia contestação até dentro das Igrejas. Também nascia ali, entre os católicos – onde até então foram ditados os rumos sociais e comportamentais da humanidade – uma preocupação com os destinos da sociedade, que começava a se voltar para a caridade e aos pobres. Leonardo Boff e o teólogo João B. Libânio eram as leituras.

A igreja deixava de ser o espaço apenas das beatas, de missas, ritos e silêncio – lugar só de oração – para ser também lugar onde jovens se reuniam, cantavam e faziam bagunça, conduzidos por padres mais modernos, menos conservadores, voltados para o estudo do cristianismo, se aprofundando mais no evangelho com a revolução proposta por Jesus.

Mais adiante, ainda foi por ali que nasceu o que chamavam de Pastoral Operária, que veio na esteira da Teologia da Libertação, um movimento mais voltado para a política, que foi por onde a igreja começou a se impor, também surgindo como parte da vida política do Brasil.

Em 1972 ou 73, eu estava lá, dentro de uma Igreja, reunido com um grupo de meninos e meninas, conversando sobre estes temas ainda pouco discutidos pela sociedade. Todos cabeludos, como os Beatles e Jesus.

Sobre este cabeludo bem mais velho, Jesus, ainda havia certo cuidado para falar dele.

Não demorou muito para que aquela instituição extremamente séria começasse a mudar definitivamente seus ares.

A mudança foi lenta, mas logo, a Missa do Galo, por exemplo, na noite de Natal, ganhou um parceiro que foi batizado de Missa do Frango, com sua estreia um pouco mais cedo, às 7 horas, na véspera, na noite de 24 de dezembro. A Missa do Galo à meia noite foi mantida, ainda para atender os mais tradicionais.

A ideia foi do Mário. Assim como foi dele outras tantas ideias, de colocar Black Sabbath, Pink Floyd, Emerson Lake Palmer, nas trilhas sonoras desta Missa do Frango. 

Mário também era cabeludo – cabelos encaracolados – e ousado como os Beatles e Jesus.

A gente não entedia bem direito o que ele queria – às vezes. Precisava de muitas reuniões para tudo ficar claro. Ele parecia ter nascido com o script de tudo que propunha. Sabia começo, meio e fim das coisas.

Discussões sobre qualquer assunto com ele, tinha sempre uma interpretação diferente.

Foi formando uma legião. Muitos ficaram, outros debandaram... eu e muitos ficamos.

Vivemos juntos até bem pouco tempo, quando Mário decidiu que tinha que ir.

Antes disso, falei pra ele: “cara, você tá se matando. Assim você não vai longe”.

Ele me olhou no fundo do olho e disse que era bem isso que queria. Com nenhum meio sorriso. Sabia o que queria e principalmente sabia o que estava fazendo.

Estava de “saco cheio” de tudo e foi se anestesiando pra não sentir a morte chegar. Escolheu um caminho e nele se empenhou até acabar.

Sofreu fisicamente, mas na alma ainda mais. Estivemos juntos uns dias antes. Estava muito mal humorado. 

Restou um pouco de roupa suja, fedida, poucos dentes e nenhuma conversa mais amistosa, sobre nada.

Ah, também um cachorro bravo, seu companheiro mais recente. O único que ele deixou chegar perto nos últimos meses, antes de ir. Foi o amigo que inclusive dormia junto. “Dividiram o canil”, como ele mesmo dizia.

Antes, bem antes disso tudo, Mario foi o Giova, por muitos anos. Ganhou este nome mais carinhoso, menos comum que Mário. Giova era a cara dele, Mário não. Mário foi o cara que se foi. O Giova ficou eternizado em nossas vidas, em nossas estrepolias por quase 40 anos.                                                      

Deixou sua história para ser contada. Sem que ninguém se envergonhasse disso. 

Sérgio Brandão